Amor
bandido
Foi num final de
semana chuvoso que minha vida mudou completamente. Através da vidraça embaçada
eu olhava a chuva caindo, estridente, batendo nos canos metálicos da fábrica. A
noite fresca aliviava o ar abafado da tarde sufocante. Ainda assim parecia-me
irrespirável a atmosfera do ambiente. A solidão daqueles corredores era
angustiante; não aguentava mais aquele trabalho. Não era só entediante, era
frustrante e desolador. Eu passava horas monitorando salões e corredores
vazios. Minha vontade era sair e deixar tudo para trás, para não mais voltar.
Mas eu me acovardava diante da possibilidade real. Eu não tinha muitas
perspectivas para minha vida e meu futuro.
Eu estava há quase
quatro meses nesse serviço, e até então não tivera problema de espécie alguma
na firma. Entrei com boa indicação, tinha boas qualificações e seguia
rigorosamente o regulamento, tanto que até criara algumas inimizades devido à
minha postura. Durante uma ronda naquela melancólica madrugada, verificando os
fundos de um dos galpões da fábrica, fui surpreendido por um barulho em uma das
portas laterais do prédio. Com cautela, fui checar o ruído, acreditando não
passar de algum gato ou outro bicho que tivesse esbarrado ou deixado cair algo.
Ao me aproximar, percebi a porta destravada, e foi apenas o tempo de sentir o
impacto dela ao me atingir com veemência, levando-me ao chão. Dessa forma os
invasores facilmente dominaram-me, e em seguida amarraram meus pulsos. Eles
estavam em três e toda a ação aconteceu rapidamente. A destreza e rapidez com
que agiram, deixou claro que tratava-se de profissionais que sabiam exatamente
o que queriam, e como fazer para consegui-lo. Levaram-me para desacionar o
sistema de segurança programado. Eu não queria ceder, até vê-la. Ela era a
líder do grupo. Uma mulher que não temia esconder sua identidade não usando
máscara, ou qualquer outro disfarce. Vestia roupas pretas que, coladas em seu
corpo, contornavam sua bela silhueta. Era a voz de comando e respeito no meio
daquele bando. Ao primeiro contato com aquela figura autoritária e feminina, eu
sabia que já estava irremediavelmente rendido e a ela entregue. Seu magnetismo
me seduziu. Eu a encarei, e sua expressão impassível exigiu de mim,
silenciosamente, obediência, ganhando assim mais um soldadinho para seus
propósitos.
Eles tinham tudo
muito estudado e planejado, e rapidamente a tarefa foi executada e eu fui
levado como refém. Em momento algum sofri agressão física, mas pressão, coerção
psicológica sim. Vendado, fui posto num carro que arrancou velozmente do local,
e cujos ocupantes permaneceram calados a maior parte do trajeto. Em determinado
momento, a voz feminina me interrogou querendo saber mais sobre mim, e confesso
que falando da minha vida pessoal, gaguejei um pouco. Perguntou-me se eu tinha
mulher e filhos para criar, o que lhe respondi negativamente. Indagou-me então
que raios eu fazia naquele serviço...
-
Seguindo para não parar no meio do caminho. Um dia minha rota pode mudar – E ela então cessou com as
perguntas. Não sei dizer quanto tempo se passou durante o percurso, sei apenas
que o aroma que ela exalava, e eu inalava, acalmava minha ansiedade, por mais
estranho que pareça. Talvez ainda não soubesse bem ao certo, mas um novo mundo
a mim estava mostrando-se. O carro parou; desceram-me. Eu apenas conseguia
identificar o ruído de nossos passos sobre pedregulhos. Escutei a voz da
misteriosa chefe dizendo a um dos homens que me levassem a sua sala. A julgar
pelo caminho que percorri, parecia um grande depósito, e após alguns degraus,
fui introduzido em um cômodo. Sentaram-me. Após alguns minutos ela chegou,
falando para nos deixar a sós. A batida de seus saltos denunciavam sua
aproximação. Seu cheiro era irresistível. Ela tirou minha venda, fixando seus
grandes olhos verdes em meu rosto, enquanto seus carnudos lábios moveram-se
lentamente.
- Se você pudesse fazer uma escolha agora,
qual seria? - apreciando seu belo rosto, sua postura imponente, seu ar
sedutor e sério, respondi com certa sofreguidão:
- Mesmo se eu tivesse em condições de optar
por algo, eu não saberia o que escolher. E agora, estou em suas mãos.
- Quero que trabalhe conosco. Acho que você
está em uma direção errada. A gente tem que sentir prazer e satisfação naquilo
que faz, e não me parece seu caso. Você merece a chance de explorar novas
direções.
Eu aceitei. Aceitaria
qualquer coisa hipnotizado por aqueles grandes olhos de esmeraldas. Ela me
desamarrou e eu perguntei-lhe se ela não temia ter feito aquilo. Com um risinho
sarcástico ela disse que nós dois sabíamos que não havia perigo, nem imediato,
nem futuro. Em nenhum instante ela hesitou em me deixar à mercê de minhas
próprias vontades e escapar. Não fui forçado, fiquei ali porque quis, e passei
por uma fase de treinamento e testes.
Eu era
designado para realizar pequenas tarefas, internas, e era constantemente
monitorado. Aos poucos fui sendo aceito pelo grupo, e entendendo o
funcionamento e o processo daquele tipo de trabalho. Sentia-me cada vez mais envolvido
com aquilo tudo. Certa tarde fui até o escritório pegar instruções para minhas
próximas tarefas, e encontrei a porta aberta e a sala vazia. A maior parte do
grupo havia saído para realizar um serviço encomendado. Entrei decidido
aguardar lá dentro minha chefe chegar. Vi algumas caixas abertas em sua mesa e
curioso aproximei-me. Em uma das caixas avistei um uniforme, e quando eu ia
tirá-lo dali, senti um golpe e meus dois braços ficaram imobilizados para trás.
Era ela. Perguntou-me com a ponta de um canivete em meu pescoço:
- O que pensa que está fazendo
aqui? - as
pontas de seus dedos encostaram em meu rosto com uma suavidade segura e
determinada. Percebi que minha vida estava literalmente em suas mãos. Ela
fechou o canivete e virou meu rosto, sem liberar meus braços. Olhamo-nos com a
intensidade da volúpia que atiça duas almas sedentas de desejo. Um vácuo no
tempo se abriu e nada mais no espaço se colocava entre nós. A sensação era
mútua. A fome e a vontade também. Num ímpeto ela me soltou e exigiu que eu
seguisse minha intuição, que eu estava livre para seguir meu caminho, o
verdadeiro, só dependia de mim dar o primeiro passo. Nunca fui bom em
conquistas, em flertar e me dar bem com as mulheres. Minha timidez e
insegurança nunca me permitiram. Mas mesmo diante de uma mulher poderosa como
aquela, não sei o que me impulsionou até ela e eu a tomei em meus braços,
beijando-a com tesão e vontade. Ela entregou-se reciprocamente. Minhas mãos
foram deslizando pelo seu corpo arrancando-lhe as roupas, e nossas bocas não
ousavam se descolar, enquanto nossas carnes inflamavam a medida em que nossa
sintonia química aumentava. Nossos corpos fundiram-se na explosão de um clímax
descontrolado e arrebatador. Eu não era mais o mesmo; depois de ter aquela
mulher, nunca mais seria o mesmo. Ela vestiu-se e disse-me que ia checar para
certificar se tudo estava em ordem no depósito, se alguém havia chegado. Ao
regressar, encontrou-me sentado em sua cadeira; semblante, expressão e postura
de um perfeito servo ao seu dispor. Eu havia renascido e não me desvirtuaria de
minha nova filosofia de vida: segui-la até o inferno se preciso fosse.
Foi assim que começou
minha vida no crime. Foi assim que começou minha saga ao lado da mulher com
quem queria passar o resto de meus dias. Eu a chamava de Sky, meu Céu, e com
essa parceria, nossos negócios prosperaram internacionalmente. Recebíamos
trabalhos encomendados de toda parte do mundo, desde magnatas anônimos a
ilustres personalidades. Especializamo-nos em furtos e roubos de informações e
documentos. Usávamos tecnologia de ponta para driblar esquemas sofisticados de
segurança. Quando necessitávamos de ajuda extra, sabíamos com quem contar,
chamávamos os melhores e mais respeitados peritos da área. Tínhamos o Furão,
exímio com explosivos e táticas de arrombamento; Billiu, o motorista mais
calculista e veloz que eu já conheci; Tom, ”O Espião”, cuidava dos pormenores
do serviço de análise do terreno, vigilância e levantamento de informações para
a elaboração da estratégia que empregaríamos. Finalmente minha Sky, a hacker mais astuta que já vi, capaz de
burlar esquemas complicadíssimos de códigos em linguagens de TI, e decodificar
controles de sistemas com maestria. Aperfeiçoei-me em abrir cofres, e
juntamente com Sky bolava a estratégia e as diretrizes do plano que
executaríamos.
Contávamos com essa
equipe em casos mais complexos, como no caso de recuperação de documentos
fraudulentos guardados em um cofre de uma empresa de prestação de serviços que
estava tentando chantagear nosso cliente. Entramos no estabelecimento, abrimos
o cofre e pegamos os tais documentos, e para ganhar tempo na fuga, preparamos
algumas artimanhas pirotécnicas executadas por Mr. Furão. Nossa retirada foi
apoteótica com direito a efeitos especiais. Foi um dos trabalhos mais
divertidos que já tivemos. Depois desse trabalho, tiramos férias na Ilha de
Páscoa por algumas semanas. Sky estava radiante envolvida na atmosfera mística
do lugar. Almoçávamos ao ar livre e fazíamos amor contemplados por aquelas
estatuetas tão misteriosas quanto a própria ilha. Não ter morada fixa, excitava
a ambos, éramos cidadãos do mundo aproveitando ao máximo as vantagens da
globalização. Eu a amava e isso me era indissociável, ela era intrínseca à
minha própria natureza.
Sky sempre acreditara
em intuição, sexto sentido, revelação; ao seu ver nada era ao acaso. E o
porque, segundo ela, nos era soprado ao ouvido ou anunciado por sinais. Segundo
seu relato, fora assim que ela chegara a mim e me descobrira como sua alma
gêmea, sua outra parte.
Lembro-me de nossa
última investida, nosso último serviço antes da dor da separação. Minha mulher
costumava consultar as cartas, acreditando plenamente que podíamos prever o
futuro através da cartomancia. Quando as jogou para saber a respeito do
trabalho em questão que realizaríamos, a sorte foi das piores. Não seríamos
prósperos, corríamos sérios riscos. Tentou de todo jeito me fazer desistir, mas
eu lhe jurei que estava tudo sob controle, que já havíamos pegado casos mais
complicados e difíceis; daria tudo certo, e que se ela quisesse, pararíamos
depois daquele serviço, seria nossa garantia de aposentadoria. Mas não era isso
que ela queria. Sky amava o que fazíamos, e assim como eu, sentia prazer em
nosso trabalho.
Entramos em uma
residência particular para pegar material de segredo empresarial. Estudamos
durante semanas a casa, a rotina de cada um que a frequentava. Tom chegou a
trabalhar na mansão como técnico de manutenção em eletrônica para ter acesso ao
seu interior a fim de obtermos mais informações. Tudo planejado, chegou o
grande dia. Desativamos o sistema local de segurança, mas sabíamos que ainda
havia dois outros em pontos específicos da casa. Por um descuido de atenção,
acionamos um dos alarmes centrais e o sistema de fechamento e travamento do gabinete
em que estávamos foi ativado. Não tinha como sairmos. Sky havia ficado no
furgão comandando de lá cada passo nosso. Não foi sua culpa o erro, foi minha.
Um toque em algo que eu não devia ter mexido jamais: um quadro fora do lugar.
Eu pedi, implorei através do ponto no ouvido a Sky para fugir que depois eu
daria um jeito. Ordenei a Biliu que saíssem do local. Cheguei a ser estúpido
com ela para que se fosse. Tom e eu fomos presos uns dez minutos depois, com a
mansão cercada por policiais. Não tinha como escaparmos nem do gabinete, nem do
cerco policial. Nunca entregamos Sky ou Biliu, e minha admiração pela lealdade
de nosso “Espião” só aumentou. Fomos condenados a doze anos de prisão cada um.
Ficamos em presídios diferentes. Disse a Sky para que nunca nos visitasse;
usávamos intermediários, celulares entre outros meios para nos comunicar.
Após um ano preso,
concretizei um plano de fuga que favoreceria tanto a mim quanto ao meu amigo
Tom. Fiz as conexões necessárias para facilitar nossa fuga, e no dia programado,
saí normalmente para realizar o trabalho de serviços gerais no qual fora
designado dentro do presídio. O caminhão da empresa terceirizada, responsável
pela refeição dos internos chegou no horário marcado, e através de manobras e
subornos, pude entrar num dos compartimentos do veículo e sair da penitenciária
sem problemas, para sempre. O mesmo acontecia a Tom em um outro ponto do
estado. Sky foi me pegar no lugar combinado. Não sei descrever a alegria e o
alívio ao vê-la junto a mim novamente. Estava junto de minha Sky. Fizemos amor
e eu lhe jurei que não mais nos separaríamos.
Fomos pegar Tom e lhe
entregamos seus novos documentos, sua nova identidade. O companheirismo com os
membros de nossa equipe só aumentou. Cuidamos uns dos outros tal como uma
família. Lealdade está acima de tudo.
Sky é minha
chave-mestra, e é a real motivação disso tudo. Nunca deixamos o roubo de lado.
Além de nosso amor um pelo outro, é o que nos incita, nos dá prazer e
proporciona conforto ao nosso estilo de vida. Enfrentamos riscos como em
qualquer outra profissão, claro que com uma dose extra de adrenalina e de
ilegalidade. Ainda assim pra mim é o que vale a pena. É vivendo assim que
descobri que é esse o meu caminho, e era sobre isso que Sky me indagou quando
nos conhecemos. Com ela descobri minha direção. Obviamente não é o caminho que
aconselho as pessoas seguirem, o risco disso tudo provavelmente não valha a
pena... não vale se você não tem o amor e a sorte a seu lado.
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